Triste, louca ou má - FRANCISCO, EL HOMBRE

Ou o papel da mulher contemporânea





Seguindo com a proposta temática deste blog, agora parto para uma abordagem mais prática e menos teórica, trazendo a primeira música a ser analisada, a lindíssima canção Triste, louca ou má, sexta faixa do álbum SoltasBruxa da banda Francisco, El Hombre, que trata de um tema fundamental para a sociedade atual e para cada mulher como indivíduo: o papel do feminino hoje.

Por séculos mulheres foram tratadas como peça acessória nos processos de construção social, como fêmea geradora da vida, nutridora, cuidadora e subserviente num mundo masculino e patriarcal. Aquelas únicas capazes de garantir e guiar a perpetuação da espécie humana sempre estiveram sob rígida vigilância e contenção.

Ter projetos de vida próprios, independência e autonomia era algo inimaginável para qualquer mulher até há alguns anos atrás. Chegar à maturidade sem ter se casado era motivo de vergonha para si e a família, "ficar para titia — solteirona!". Sonhar com uma carreira em tempo integral, não se interessar por tarefas domésticas, ou não desejar filhos era definitivamente sinal de que você era uma mulher desequilibrada, desajustada e até uma pessoa ruim mesmo.

E isso aconteceu ontem, com nossas avós e nossas mães. Ao longo da vida conheci inúmeros casos de mulheres que sofreram terríveis dificuldades em casamentos ruins, infelizes, forçados pela família, ou que foram discriminadas por terem se separado de seus maridos, por pior caráter que tivessem e mesmo quando era o homem quem abandonava o lar e a família nas mãos dessas desafortunadas mulheres, eram elas quem eram julgadas e recriminadas: "o marido não a aguentou, foi embora!", "essa foi abandonada, não soube segurar o homem". E tudo que lhes restava era engolir o orgulho, conseguir um subemprego (já que não tinham oportunidade para ter uma formação) e fazer das tripas coração para criar seus filhos, enquanto a sociedade e a família lhe voltavam as costas ou lhe apontavam o dedo.

Ainda hoje, em pleno século XXI, inúmeras mulheres ainda sujeitam-se a relacionamentos abusivos por acreditarem que sem um homem, um marido, não serão suficientes para enfrentar o mundo. Quanta violência, opressão e sofrimento já não vivemos? É preciso dar mais um passo na evolução da humanidade, mas essa transformação só pode acontecer de verdade se também se fizer notar individualmente, a partir de cada sujeito feminino.

E pela primeira vez em muito, muito tempo, conquistamos o frágil direito de dizer NÃO se não estivermos interessadas, ou de dizer SIM se essa for a nossa VONTADE. Apesar de tantos dedos em riste ainda esperando para criticar no mundo afora, o mundo ocidental finalmente permite com um pouco menos de hipocrisia que qualquer mulher tenha o direito de ser e fazer absolutamente qualquer coisa que quiser. E considerando todas as coisas que foram tiradas e tudo de que foram privadas não só nossas ancestrais, mas nossas irmãs contemporâneas em certas partes do mundo, esse direito se converte rapidamente em uma obrigação!

A música escolhida para este texto é fantástica justamente por trazer uma reflexão tão profunda sobre a mulher em sua relação consigo mesma e com o mundo externo — triste, louca ou má — era o que diziam sobre qualquer mulher que não se adequasse ao papel imposto pela receita cultural vigente. Receita esta que não pode mais seguir sem ser questionada, não deve mais ser imposta como norma obrigatória para que uma mulher possa se sentir plena, realizada e sã. Nenhuma mulher, assim como nenhum outro ser humano deve ser coagido a ser o que não é e não deseja ser.

A intenção deste texto não é condenar os valores tradicionais, as instituições do matrimônio ou da família nuclear tradicional, mas defender que esses valores e qualquer outro valor só seja adotado por uma mulher por SUA ESCOLHA, sua vontade e seu desejo consciente e não por qualquer outra razão. Aos homens, pedimos que lembrem-se que poderemos viver muito mais plenamente nossas relações se antes de desejarem a mulher diante deles, ou de esperar que ela desempenhe qualquer papel, apreciem e especialmente, respeitem o ser humano rico e complexo que ela é, do qual ser Mulher é apenas uma pequena parcela.

A tocante canção expõe toda a dor e angústia sofrida pela mulher arquetípica, por incontáveis gerações de mulheres, para que nós, as mulheres no agora, possamos renovar a coragem, a força e a doçura de todas elas ao reconstruir o que entendemos por ser mulher.

Lacan afirmou que "A mulher não existe", referindo-se ao significante Mulher, ou seja, a definição do que significar SER MULHER. Tal afirmação se deve ao fato de que ele entendia que a mulher não é, mas se torna. Ela chega a seu significante individual através de uma construção, um processo, um vir a ser que a conduziria a esse tornar-se.

E a canção dá um excelente caminho para que cada mulher possa buscar seu verdadeiro SER MULHER: 


"...eu não me vejo na palavra
 fêmea: alvo de caça
 conformada vítima  
Prefiro queimar o mapa 
traçar de novo a estrada 
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar.
e um homem não me define 
minha casa não me define 
minha carne não me define
eu sou meu próprio lar..."







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