CHOREI DESCANCANDO BATATAS OU UMA VISÃO POÉTICA DA TRAGETÓRIA DO FEMININO NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
Introdução
Primeiramente gostaria de denotar que embora sendo eu, quanto posso, comunicóloga, psicanalista, roteirista, escritora de ficção e pretensa poetisa, o texto a seguir não pertence a nenhum campo específico nem se relaciona diretamente com a psicanálise de nenhuma forma, exceto por ter sido inpirado devido ao fato de estar correntemente me submentendo à análise, recentemente retomada. O simples ato de submeter-se a qualquer forma de psicoterapia desencadeia espontaneamente certos processos psíquicos voltados ao nosso próprio desenvolvimento psicólogico e à cura de nossas feridas emocionais. Para mim particularmente, escever textos ou poesias sempre foi terapêutico.
Daí que meus textos, sejam eles de cunho teórico, acadêmico, ficcional ou poético, sempre me ajudam a traduzir e elaborar meus conteúdos, antes de ocupar-me com a forma ou a retórica. As palavras sempre me foram melhores amigas íntimas que colegas de trabalho. E a este texto em questão, calhou sair-me ligeiramente poético, ligeiramente filósófico e um tanto quanto analítico. Assim decidi publicá-lo em todos os (poucos) feeds que mantenho.
Comecei a escrevê-lo durante as férias do trabalho de 2019. Por n motivos, terminei de escevê-lo somente hoje. Em conclusão, acredito que precisei de todo este tempo para digerir completamente todas as percepções que tive naquele novembro chuvoso repleto de solitude na praia.
Uns 2 anos antes disso, uma necessidade profunda de rever meu paradigmas e minha maneira de viver fizeram com que eu me retirasse pouco a pouco de todas as obrigações profissionais, acadêmicas e sociais que não fossem essenciais e eu atravessava um longo período de recolhimento e introspecção.
À época daquelas férias, eu me debatia especificamente com algumas questões pessoais e conflitos internos referente a minhas relações comigo mesma, com outras pessoas em geral e também no sentido romântico. Sentia necessidade de rever como eram construídas por mim essas conexões e que papéis eu atribuía a mim mesma nessas relações, como ser humano e como mulher. Casualmente tinha férias vencidas a gozar e me dispuz a usar alguns desses dias livres para trabalhar mental e emocionalmente essas questões. Escrever sempre me ajudou a processar meus afetos e depois de alguns poderosos insights tentei materializá-los num texto, mas não pude concluir pois os conteúdos pareciam ainda muito fluídos e fugidios.
Fui capaz de terminá-lo hoje, enquanto buscava referências e tentava escrever um roteiro de audiovisual (que obviamente ficou inacabado) que ilustrasse figurativamente os níveis de consciência e a necessidade de a expandirmos em direção à universalidade para a sobrevivência, não apenas da espécie humana, como de toda vida na Terra. A conexão entre os assuntos se deu na figura do feminino arquetípico, que ofereceu respostas às minhas questões em 2019 e que surge agora como elemento chave requerido para a transformação global que a consciência humana precisa adotar para a nossa sobreviência e sanidade.
São Paulo, 15 de fevereiro de 2021.
Priscila Rizzi
Essa manhã eu chorei descascando batatas...
Sim. Batatas.
Não eram
cebolas.
Eram batatas!
Grande parte da vida fui uma fêmea fálica (ousada, decidida, senhora de mim) e confesso que na maior parte do tempo me sentia bastante desconfortável na pele de mulher. Não somos um mistério apenas para os homens. Tampouco recebemos o tal manual de instrução, principalmente quando nos recusamos a ouvir a própria intuição. Lacan já dizia que não se nasce mulher, torna-se. Ser mulher é vir a ser. E ainda não estava muito certa de O QUÊ deveria eu vir a ser? Há tempos eu procurava em vão uma forma de me conectar com minhas ancestrais, com meu
feminino sagrado ancestral e não importava o quanto eu tentava me aproximar, sempre
vinha a sombra da razão e as correntes do pensamento crítico e me afastava dali com frieza.
Quando alguma questão profunda me incomoda, gosto de passar um tempo sozinha e me dedicar a pensar numa solução para o incômodo. Era um momento desses e eu estava em isolamento há alguns dias, aproveitando o tempo livre de férias na praia para refletir e compreender-me melhor, enquanto contemplava dias cinzas e mornos de chuva interminável e era conduzida a um estado de espírito entre o melancólico e o terno. Os dias dedicados ao autoconhecimento transcorriam entre o tédio e o entretenimento barato, com doses de autopiedade e de culpa.
Finalmente, numa manhã tépida, a chuva cessou e um tímido sol cor de prata beijava as flores da minha mãe lá fora no quintal. Me levantei disposta ainda bem cedo e fiz café, que bebi quente com um cigarro, olhando a paisagem do alto da sacada. Enquanto avistava a um senhor idoso e a um urubu, ambos se deixando beijar por esse sol prateado, me sentia alegre e serena e decidi dedicar aquele dia a ficar focada em meu intento. Meditei por alguns minutos contemplando os raios da aurora, então desci as escadas e abri todas as portas e janelas, coloquei uma música suave e envolvente para tocar (Cocteau Twins - o álbum Garlands, se alguém quiser saber) e depois de passar algum tempo lendo (Chico Xavier, se não me lembro mal) e cuidando das plantas, comecei a preparar um café da manhã leve (sou do tipo que rotineiramente fica só no café preto até a hora do almoço tardio).
Comi uma salada, saboreando deliberadamente cada folha e cada textura e cada umidade da vida, agradecendo ao vegetal que eu ingeria por me alimentar. Isso apenas serviu para abrir meu apetite. O sol já ia alto e, ainda com meu intento firme em mente, decidi cozinhar alguma coisa...
... Não foi o deslumbrante Sol nascente. Nem foram as lindas flores de minha mãe. Nem os adoráveis passarinhos cantando freneticamente lá fora. Nem mesmo o café fresquinho, passado na hora, com seu aroma repleto de memórias familiares e doces.
Foram as batatas! No momento em que segurei uma batata na mão e na outra uma faca, eu senti. Alí, naquele simples gesto. Incontáveis vezes repetido. Por incontáveis mãos, de incontáveis mulheres. Sei que descascar batatas não é necessariamente uma tarefa feminina. Entretanto nada pode ser mais feminino do que isso, o gerar nutrição, preparar o alimento. Infinitas mãos, mãos pretas, mãos pardas, mãos brancas, mãos ímpias, mãos puras, pagãs ou cristãs! Quantas mãos descascando batatas foram mães de muitas fomes por séculos? Ou por milênios, mãos femininas e nutridoras usando um objeto cortante em qualquer vegetal, para transformá-lo em alimento. Realizaram essa alquimia primordial de converter vida vegetal em força vital humana e agrado para os sentidos, repetidamente, incontáveis vezes. Segurando esse tubérculo, me vi repetindo um gesto ancestral básico, de nutrição, presente desde o emergir da humanidade.
Quantas delas,
desde então? Segurando um recipiente com água entre as pernas, encarando o
alimento a ser preparado como quem olha para vida mesma? Quantas, se comparando
às suas iguais e olhando ao redor e espantando as moscas? Quantas, compartilhando e segredando alegrias
e tormentos? Quantas celebrando a fartura ou amaldiçoando a escassez quando a
fome roía o estômago de todos?
A cada vez que
a faca cortava a casca da batata eu as via! Quantas! Miravam sonhos perdidos,
desejos buscados? Descascar as batatas era, naquele momento para mim,
descortinar o passado e o futuro de toda a espécie humana. Não os grandes momentos épicos,
de acontecimentos e marcos históricos. Mas o cotidiano através do tempo, de vida
após vida, após vida, dentro dos lares, na intimidade. Da caverna, ao castelo, ao
barro, ao casarão, à senzala, à choupana, à embarcação, ao edifício. Por todos
os rincões onde a humanidade satisfaça privadamente como puder seus apetites e
desejos carnais, suas fomes e ganas. Através da vida e da morte trazendo
renovação, sofrimento e júbilo a essas mulheres que, de um jeito ou de outro,
deviam alimentar aos seus, ou aos dos outros, mas que eram responsáveis pela
bruxaria de converter fome em saciedade, com os ingredientes que tivesse à mão.
Enquanto o tempo as atravessava, elas cortavam aos prantos, aos cantos,
cantando, pensando e sonhando, irrefreavelmente submetendo ao fio cortante o
submisso vegetal.
Eu manipulava a
faca com pouca agilidade e temendo pelos meus dedos enquanto me esforçava o
melhor que podia para cortar a casca bem fina e remover os pequenos “olhos” da
batata. E me concentrando nessa tarefa, a mente distante divagava e me
conectava com o elemento arquetípico contido nesse gesto ancestral.
Vislumbrei as
grandes matriarcas pré-históricas, corpulentas e de seios fartos suprindo a
todos os seus filhos de acordo com suas necessidades. Vi a ferramenta cortante na
mão da parteira que cortava o cordão umbilical dos recém-nascidos. Na mão da
caçadora, abater a presa e ceifar da terra o alimento de toda sua tribo. Vi a
Mãe dos primórdios da civilização aprendendo a cultivar o próprio sustento e ao mesmo tempo fincando
as raízes da humanidade. Assisti quando para elas seus numerosos filhos eram
sinal de prosperidade e garantia de sobrevivência, incrementando a mão de obra
que garantia a segurança e o sustento. Vi a virgem aprendendo a ser mulher ao
redor de um caldeirão junto das mais velhas. Observei o arado, a faca, a agulha,
a colher, o barro, a água e o fogo desse coletivo feminino construindo passo a
passo, dia após dia, a sustentação, a pedra angular de todo o mundo como o
conhecemos hoje.
Então meus
olhos ficaram úmidos e meu coração confrangido. Pois vi a mão do homem, construtor, companheiro
e amoroso parceiro, ser convertida em mão de ferro. Testemunhei quando aqueles a quem elas
nutriam se tornaram ingratos. Vi quando as violentaram, aprisionaram, torturaram
e escravizaram. Quando as matavam como gado e as temiam como ao demônio. As
tratavam como a uma besta perigosa que precisa ser levada em rédeas curtas, acorrentada
e controlada à força. Eles acreditaram na ilusória beleza das polaridades, da
competição e da predação. Seduzidos pelo poder por meio da brutalidade e
dominação. Acreditavam na escassez, temiam os diferentes e acreditavam na ordem
pela padronização e a opressão. Proibiram os outros deuses e a Mãe Terra e suas
filhas foram rebaixadas ao chão que pisavam.
Testemunhei seu
sangue sagrado profanado tantas e tantas vezes que elas começaram a esquecer de
quem eram. Suas lâminas algumas vezes se voltavam contra os que as feriam. As observei tornarem-se carrascas de si mesmas e se aviltar como seus inimigos. Vi
suas mãos nutrirem enquanto seus lábios vertiam veneno contra os seus, contra
as suas, contra todos e sobretudo, por fim, contra si mesmas.
Entretanto
vislumbrei adiante, se rebelarem contra seus opressores sem retribuir a
agressão, mas compassivamente e eram belas e luminosas, plenas de poder e de
equidade. Me deslumbrei quando lançaram um tsunami dirigido que lavou da face
da Terra todo o ódio, todo o medo, todo egoísmo e cobiça. E seus ventos
sopraram as sementes da colaboração, da compaixão e da irmandade universal de
toda a espécie humana e de toda vida no planeta.
As vi ensinando
aos homens que o propósito da consciência humana é ser consciente de toda a vida na Terra e do movimento no cosmos, para monitorar e
orientar conscienciosamente o equilíbrio universal. Vi tudo isso em primeiro plano, e experimentei em primeira mão a sabedoria ancestral viva e pulsando dentro de mim, mesmo quando eu não a percebia. Entendi que guardava em meu interior a história de todas essas mulheres e que o meu vir a ser como mulher deveria conter a expressão da continuidade de todas elas, o desenlace de tudo o que fizeram, de toda sua dor e júbilo no intento de perpetuar a vida humana. Isso significava não tripudiar sobre suas fraquezas, nem subestimar a sua força. Mais, significava honrar seus sacrifícios e agradecer por me possbilitarem ser. Implica em abraçar a compaixão mariana, a determinação de Joana e o amor madalênico pela vida. É impossível o vir a ser mulher apenas com um arremedo submisso, ou uma cópia mal feita do oposto. Requer que sejam evocadas todas elas: a imperatriz, a sacerdotiza, a virgem, a grande mãe, a agricultora, a ardilosa, a caçadora, a guerreira, a anciã, a amante, a consorte e a temperança. Nenhum altar deve ficar desassistido, ou o vir a ser é incompleto. É um ser subdesenvolvido.
A essa altura,
a água na panela já fervia, e deixei em ebulição junto com as batatas todas
essas visões do passado e sonhos do futuro, sem perceber que inalava os vapores
do sagrado feminino se projetando no ar à minha volta e em todos os recantos do
mundo onde uma alma feminina estivesse descascando similares “batatas” arquetípicas.
E enquanto minha alma, em estado de comunhão, orava para que esse vapor se alastrasse por toda a atmosfera do planeta, eu apenas me sentei e agradeci à Grande Mãe pelo alimento, enquanto secava os olhos e comia meu purê de batatas, satisfeita.
Comentários
Postar um comentário